LANÇAMENTO DA FRENTE AUDIOVISUAL A CASA DE VIDRO
DANCE, DANCE, OTHERWISE WE’RE LOST (Holanda, 2023, 18 min)
Assista: https://youtu.be/dk8nOe7USS0
SINOPSE & CONJUNTURA – Outubro de 2023 foi mesmo um mês bizarro. Os eventos de 7 de Outubro na fronteira de Gaza com o Sul de Israel já haviam começado a provocar abalos sísmicos na geopolítica global com o início do genocídio que o sionismo inflige aos palestinos nestes últimos 9 meses. Somava-se a isto uma crise habitacional severa caotizando o mercado imobiliário em um local que abriga uma das mais prósperas indústrias do turismo no planeta – cerca de 17 milhões de pessoas visitam Amsterdam todos os anos.
Com o preço dos aluguéis subindo como foguetes, em virtude tanto da especulação e do rentismo quanto da proliferação de AirBnbs, o clima estava posto para uma insólita confluência de protesto e rave, unindo squatters e ativistas queer e climáticos, sob consignas como “Capitalism Kills, Love Fulfills” (Capitalismo Mata, Amor Plenifica) e “Drop Acid, Not Bombs” (Drope Ácido, Não Bombas).
Foi este carnaval subversivo e fora-da-caixa que tomou as ruas de Amsterdam no encerramento do festival de música e dança Amsterdam Dance Event (ADE), realizado todos os anos durante 5 dias na metrópole holandesa (saiba mais: https://www.amsterdam-dance-event.nl/en/). Trata-se de um dos mais importantes eventos europeus de música eletrônica e expressões corporais conexas – incluindo também atividades gratuitas como palestras e exibição de filmes – que ocorre sempre no mês de Outubro em dezenas de locais culturais espalhados pelo labirinto de pontes e canais que constitui o charme inigualável da Velha Dam (750 anos de fundação e contando). Tive minha mente explodida e expandida, durante a ADE, por eventos como a palestra de Josephine Zwann sobre a descolonização do loop e como ser um beatmaker afrofuturista (click e leia).
Se, no cenário cultural, o trance reina nas Netherlands e há o ascenso de vertentes como o afrohouse, no cenário geopolítico e internacionalista a pauta da solidariedade ao povo palestino já queimava nas ruas e nos P.A.s. nesta ocasião. Coligava-se com a indignação com o alto custo de vida numa cidade onde a dificuldade de encontrar um local para morar já é um desafio hercúleo, devido à escassez de imovéis disponíveis, e pior ainda é dar conta de pagar os boletos (1.000 euros por uma kitnet? Fala sério!).
Sem fazer parte da programação oficial do badalado evento cultural gourmetizado (a ADE tem ingressos caros e suas festas não são nada inclusivas – os pobres não podem dançar?), a mobilização dissidente / alternativa / clandestina “ADEv” arrastou milhares de pessoas para uma espécie de carnaval queer-trance que concentrou-se na Dam Square e depois desfilou por quilômetros em algo parecido aos carros alegóricos dos carnavais brazucas.
Um dos auges do protesto festivo ocorreu quando os ravers, som no talo, trance rolando em altos decibéis, chegaram a um prédio ocupado por squatters no centro de Amsterdam e rolou um baita fuzuê na ocupa e seus arredores. A Holanda tem tradição – desde o Movimento Provos – de ocupações urbanas de imóveis vagos que geram estas comunas de squatters que resistem à polícia e ao mercado com atitude confrontadora, anarco-punk, e neste período histórico também explicitamente pró-Palestina e a favor do boicote de todos os cúmplices da mortífera entidade sionista.
Este é um curta-metragem totalmente anômalo em minha filmografia de documentarista independente por revelar uma forma de ativismo que eu não conheci em nenhuma outra parte do planeta. Um ativismo em que há uma forte presença da hoje tão hegemônica cultura trance e raver holandesa, movida a batidas eletrônicas frenéticas e substâncias psicodélicas fáceis de comprar legalmente nos coffeeshops e smartshops. Com um vanguardismo muito forte e extremamente lúdico do Movimento Queer.
Os 18 minutos do curta propiciam uma imersão nada didática e pouco problematizadora nos eventos desta ocasião – cabe ao espectador tirar suas próprias conclusões sobre este fluxo audiovisual imersivo que permite sentir um pouco como ferveram as ruas. Há discursos anti-capitalistas na Dam Square (onde está o Palácio Real da monarquia holandesa) e um pouco de música ao vivo, inclusive um power trio de punk instrumental, dividindo espaço com um experimentalismo de montagem em que trago fonogramas – um clássico da Motown (de Martha & the Vandellas), a “Amsterdam” do Crowded House e canções da maravilha do indie dos Países Baixos Sophie Straat – para produzir um estranho mélange entre os corpos tranceficados nas ruas e uma trilha sonora que não é aquela com a qual as pessoas estão dançando.
Algumas performances relâmpago também dão as caras em meio a um cenário urbano insólito em que se misturam a estátua de Rembrandt e as bandeiras palestinas; os desnorteados fardados da Politie com pessoas de cabelos coloridos e gênero indecifrável (certamente pós-binário) transformando o asfalto da Dam numa rave improvisada.
O filme dá muita atenção a um coletivo chamado Queer Landing e mostra a tomada dos espaços públicos por uma galera que se utiliza do desvio comportamental em relação às normas vigentes e da subversão sistemática das normativas de gênero para propor uma espécie de revolução jubilosa, de revolta dançante, que evoca em mim a famosa frase de Emma Goldman – “se eu não puder dançar, não é minha revolução”.
O climão da manifestação dançada acabou também por evocar a frase que batiza o curta, que veio da Pina Bausch, destacada no belo filme que lhe foi dedicado por Wim Wenders: “dance, dance, otherwise we’re lost”. Desde que assisti a este doc e que depois fui me inteirar sobre o espetáculo de Pina construído sobre “A Sagração da Primavera” de Stravinsky nutro grande admiração por esta artista e quis homenageá-la neste filme onde os corpos dançam sempre fora das caixinhas onde a normose tenta nos confinar.
Se lá atrás, quando o movimento psicodélico e hippie uniram suas vertentes numa confluência inaudita, a trupe dos Merry Pranksters, em seu busão colorido movido a LSD no quengo, tinham por destinação um local chamado FURTHER (cf TOM WOLFE, O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, a obra prima da gonzo reportagem); já aqui, estes estranhos coloridos carros que levam os ravers estão destinados a INTERSECTIONALITY AND BEYOND…
Resta ainda um breve comentário autobiográfico: nesta ocasião, recém-chegado para um período de 6 meses como doutorando na UvA, eu vivia em situação de alta precariedade habitacional, lutando por um lar difícil de encontrar nesta insanidade acabrunhante que é o mercado imobiliário de Amsterdam. Descobri nas ruas e redes que meu problema não era pessoal mas coletivo, não circunstancial mas estrutural, e que morar nos bairros centrais da metrópole seria inviável senão possível (melhor tirar o cavalinho da chuva). Filmei estas cenas enquanto surfava por hostels e caçava quartos em anúncios de rede social, até enfim encontrar meu lar no bairro afroislâmico (mas isto é outra estória…).
Eduardo Carli, Goiânia, 5 de Julho
Assista: https://youtu.be/dk8nOe7USS0
Publicado em: 05/07/24
De autoria: Eduardo Carli de Moraes
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